Fim do imposto sindical, contribuição obrigatória que sustentou os sindicatos brasileiros por décadas. Enfraquecimento e flexibilização das leis trabalhistas, vistas por boa parte dos empresários como os maiores adversários dos seus negócios. Índices alarmantes de desemprego. Entre os que estão empregados, apenas metade em relações de trabalho típicas, com carteira assinada e proteção da lei – a outra metade toda em situação de insegurança, dividida entre ser trabalhador autônomo, fazer bico, receber salário como Pessoa Jurídica ou trabalhar para aplicativo. Ascensão e hegemonia do discurso “coach”, de que “quem acredita, consegue”, de que “o dicionário é o único lugar do mundo em que sucesso vem antes de trabalho” e de que, portanto, cabe a cada um se esforçar e correr atrás do seu individualmente, sem vinculação com os demais.
Dados todos esses fenômenos dos últimos anos, é difícil imaginar um cenário mais difícil para o sindicalismo brasileiro do que aquele que ele enfrenta atualmente. Para a maior parte da população brasileira, o sindicato soa hoje como uma instituição mofada, desgastada, fora de lugar – quando não um estorvo.
Essa mentalidade antissindical tem diversas origens. Passa, como já indicamos antes, por algumas mudanças profundas que ocorrem hoje no mercado de trabalho e que o diferenciam bastante da época de formação das nossas organizações trabalhistas, cem anos atrás. O antissindicalismo passa bastante também pelo incômodo com a politização dos sindicatos. É muito comum a denúncia de que os órgãos profissionais se tornaram meros cabides de emprego, mais preocupados em defender os interesses dos partidos políticos de seus líderes do que propriamente em defender os interesses concretos dos trabalhadores. Com toda a certeza, porém, o maior motivo da crise dos sindicatos brasileiros está na hegemonia do discurso liberal, cada vez mais dominante na sociedade brasileira.
Ao longo da história, é difícil encontrar alguma coisa que os liberais odeiem tanto quanto a autoorganização dos trabalhadores. Em 1791, por exemplo, logo no início da Revolução Francesa, antes mesmo de se proclamar a República, a Assembleia Nacional aprovou a chamada Lei Chapelier. Este decreto, que vigorou na França por mais de 70 anos, simplesmente proibia a existência de organizações de trabalhadores (na época chamadas de corporações). Isaac Le Chapelier, autor do projeto, defendia a criminalização total dos sindicatos, dizendo que “se deve, sem dúvida alguma, permitir a todos os cidadãos que se reúnam; mas não se deve permitir aos cidadãos que se reúnam por profissões, para velar por seus alegados interesses específicos. Não há senão o interesse particular de cada indivíduo e o interesse geral. Não é permitido a ninguém inspirar nos cidadãos um interesse intermediário, separando-os da coisa pública por um espírito de corporações”. De Paris, essa perspectiva espalhou-se por todo o mundo, chegando rapidamente, inclusive, ao Brasil. De fato, a nossa Constituição do Império, de 1824, listava entre as garantias e direitos individuais fundamentais dos cidadãos que “ficam abolidas as Corporações de Ofícios, seus Juízes, Escrivães, e Mestres”.
Nos dias de hoje, é difícil encontrar um liberal que defenda a proibição das corporações profissionais. A mentalidade do velho jacobino Chapelier, contudo, permanece vivíssima. O liberalismo continua a sustentar que só há socialmente dois interesses legítimos: o “interesse particular”, desejo de cada indivíduo, e o “interesse geral”, público, representado pelo Estado nacional. Tudo o mais é sem importância. Toda a vasta rede de comunidades e associações existentes entre o indivíduo isolado e o poder político central fica, portanto, anulada – ou, no máximo, tolerada. Isso vale para a família, a vizinhança, a associação de moradores, o município. E vale também para o sindicato. Na ótica liberal contemporânea, as organizações trabalhistas podem até existir – sob a condição, porém, de serem órgãos meramente privados, simples associações de indivíduos, sem qualquer papel social relevante ou função pública reconhecido pelas instituições.
Eis aí o individualismo em seu estado mais puro, onde a sociedade não é mais do que um agregado de átomos. Seria esse, porém, o caminho a ser trilhado pela pátria brasileira? Será que assim que seremos felizes e estabeleceremos justiça?
A Doutrina Social da Igreja, fonte de inspiração principal do trabalho da Comunhão Popular, apresenta uma perspectiva sobre a questão sindical diametralmente oposta à do individualismo. Se é difícil encontrar, ao longo da história, uma coisa que os liberais odeiem tanto quanto a autoorganização dos trabalhadores, igualmente difícil é encontrar, em todas as encíclicas papais, uma coisa que a DSI aprecie tanto quanto os sindicatos. Desde “Rerum Novarum”, em 1891, os organismos profissionais são sistematicamente apresentados pelo Magistério católico como elementos essenciais da vida social, cuja centralidade deve ser reconhecida por todos, de maneira oficial, e que inclusive possuem, em certo sentido, mais relevância para a solução dos problemas sociais do que o próprio Estado. “Na questão do salário e em outros casos análogos, como no que diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, sendo de temer que a intervenção dos poderes públicos seja inoportuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares” – afirma Leão XIII – “será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos de que falaremos mais adiante, ou que se recorra a outros meios de defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se a questão o reclamar”.
Ora, essa posição é, de longe, a mais coerente com a realidade. A pessoa humana é por natureza sociável. Não somos ilhas. A vida social é múltipla, complexa e não pode ser reduzida a uma polarização simplista entre Estado e mercado. Portanto, não é o poder público que deve ser reconhecido como o eixo da vida do país, nem os indivíduos solitários, em suas iniciativas privadas. O verdadeiro centro da pátria brasileira – de qualquer pátria, aliás – é a sociedade civil, com todo o seu vasto tecido de comunidades e associações. Os “interesses intermediários”, que Chapelier tanto destetava, são muito valiosos. E, ao contrário do que pensava o jacobino, eles não separam os cidadãos do interesse público. Pelo contrário. O que as comunidades fazem é interligar as pessoas e grupos de uma maneira concreta, criando um forte vínculo de solidariedade social.
No caso das necessidades dos trabalhadores, o senso comunitário é especialmente importante, sobretudo para que não se caia no velho vício do paternalismo. A relação do patrão com o empregado não se reduz a um contrato entre iguais, muito menos a uma transposição da relação entre pai e filho. Ainda que seja inegavelmente baseada em um encontro de vontades e que seja virtuoso um tratamento gentil e amigável, a relação de trabalho tem uma lógica própria, marcada pela fragilidade do trabalhador, que só pode ser compensada por organização coletiva. Dizia Jacques Maritain, em “Os Direitos do Homem e a Lei Natural”: “Se o proletariado pede para ser tratado como uma pessoa maior, por isto mesmo ele não ter que ser socorrido, melhorado ou salvo por outra classe social. É a ele e a seu movimento de ascensão histórica que incumbe o papel principal na fase próxima da evolução”. Essa defesa coletiva dos interesses dos trabalhadores como tais não pode ser alcançada individualmente, ou por ONGs e novos tipos de organização social – é uma função dos sindicatos!
Diante de toda a fragilidade e de todos os vícios do sindicalismo nacional, o que nos cabe hoje, em cenário de enorme erosão do valor do trabalho, não é ficar de braços cruzados diante da morte das organizações trabalhistas, mas lutar por sua reforma e regeneração.
Concretamente, o passo mais imediato a ser dado Estado brasileiro neste campo é voltar a reconhecer, de maneira formal e institucional, a importância dos sindicatos, conferindo a eles poderes políticos reais, dentro do seu âmbito de atuação.
Alguns países têm experiências recentes e interessantes neste sentido. Na Irlanda, por exemplo, há, desde 1987, as “Social Partnerships” (“Parcerias Sociais”). Trata-se de grandes acordos nacionais, válidos cada um por três anos, regulamentando questões socioeconômicas, sobretudo trabalhistas. As “Social Partnerships” têm esse nome porque são fruto de um grande pacto social: um terço da comissão que as elabora é composto por representantes do governo, um terço por representantes dos patrões e um terço por representantes dos sindicatos. Uma estratégia muito semelhante, também de negociação tripartite, é adotada desde 1982 na Holanda, país em que a experiência é conhecida como “Modelo Pôlder”. Na Itália, desde antes, por iniciativa dos democratas-cristãos, a Constituição de 1947 estabeleceu a criação do Conselho Nacional da Economia e do Trabalho (CNEL), composto por economistas profissionais, representantes dos empresários e líderes de sindicatos. O CNEL não substitui o Congresso na discussão das questões econômicas, mas tem a prerrogativa de apresentar projetos de lei sobre temas da sua alçada. Além disso, é um importante órgão de consulta para o parlamento italiano, redigindo inúmeros relatórios. Conselhos do mesmo tipo existem em outros países, como a França e a Espanha.
O próprio Brasil já teve institutos tripartites desse tipo em vários segmentos. Em um caso de maior visibilidade, havia o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). No entanto, desde o governo Temer e de maneira ainda mais acentuada no governo Bolsonaro, não é mais um órgão de representação da sociedade civil, com presença das confederações de patrões e de sindicatos de trabalhadores. Hoje, o Conselhão, como é vulgarmente conhecido, se tornou um simples grupo de assessoria para o governo, com membros exclusivamente nomeados pela presidência, sem qualquer conexão com as comunidades reais do Brasil.
Para nós, da Comunhão Popular, é preciso garantir a presença dos representantes sindicais nos espaços de poder, permitindo a eles influenciar na definição das políticas públicas relacionadas às suas áreas específicas. Muitos talvez achem que isso irá aumentar a politização das corporações, mas é justamente o contrário: quanto mais poder os sindicatos tiverem, quanto mais eles puderem fazer avançar sua agenda por sua própria atuação no debate, sem depender das esmolas dos políticos, menos eles se sentirão tentados a ser filiais de partidos. E quanto mais poder real os sindicatos tiverem para defender os interesses de sua classe, mais os trabalhadores se sentirão motivados a se engajar na vida sindical e combater os abusos.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular.