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Doutor Sobral, a tortura e a “guerra cultural”

Há algumas semanas, a jornalista Míriam Leitão divulgou uma série de áudios, extremamente graves e até então desconhecidos, do Superior Tribunal Militar, a mais alta instância da Justiça Militar brasileira. Gravados em fins dos anos 70, no auge da ditadura civil-militar instaurada em 1964, os áudios registram importantes sessões do STM, inclusive algumas sessões secretas. Nelas, vários ministros reconhecem explicitamente a existência no país de práticas de tortura contra presos políticos, seja para intimidação e aterrorização, seja para obtenção de informações, seja até mesmo para obter depoimentos forjados.

Obviamente, o povo brasileiro não precisou esperar a revelação destes áudios tenebrosos para ter certeza de que a ditadura militar praticou tortura em larga escala e violentou brutalmente os direitos humanos daqueles que ela identificava, corretamente ou não, como subversivos. Tudo isto está mais do que provado, documentado e é de conhecimento público. O que realmente há de novo nos áudios é a comprovação definitiva, e sem margem para dúvidas, de que a violência de Estado não foi simplesmente praticada nas sombras, nos porões do DOPS e do DOI-CODI, sob o conhecimento de poucos. Ao contrário. Como comprovam as gravações obtidas por Míriam, a barbárie produzida pela ditadura de 64 era de amplo conhecimento do poder público, chegando a ser debatida francamente pelos mais altos juízes da hierarquia militar. Alguns deles, inclusive, mesmo apoiando o regime estabelecido, se posicionam nos áudios claramente contra a prática da tortura, considerando-a uma covardia desumana, que desonra a história e a identidade das Forças Armadas.

Felizmente, porém, mesmo em meio a toda essa desgraça, nós, membros da Comunhão Popular, temos algo que nos dá motivo de orgulho. De fato, nas gravações do STM ouve-se não apenas a voz dos ministros, mas também a de um advogado que lá foi, em 1977, para defender um torturado, lutar por sua reparação, denunciar a violência do Exército e exigir o restabelecimento do Estado de Direito, no qual a ação dos agentes públicas subordina-se à lei, que protege os direitos individuais de todos os cidadãos. Este advogado, de postura tão heroica, nos orgulha precisamente porque é um dos nossos ícones, uma das fontes de inspiração mais importantes da Comunhão Popular. Seu nome é Heráclito Fontoura Sobral Pinto.

Nascido em 1893 e vivendo por quase um século, Doutor Sobral, como era conhecido, foi um dos mais importantes advogados da história brasileira. Acumulou casos e mais casos célebres, da defesa do Hotel Copacabana Palace à de Juscelino Kubitschek. Católico fervoroso, de grande dedicação à vida espiritual e ao cuidado dos pobres, fez parte, junto de Alceu Amoroso Lima, Hamilton Nogueira e tantos outros, da primeira geração do Centro Dom Vital, a mais importante organização da intelectualidade católica na história do nosso país. Anos mais tarde, já nos anos 70, chegou até mesmo a presidir o CDV. Sua notoriedade, no entanto, veio sobretudo de seu engajamento em questões políticas.

Figura atuante na organização do Primeiro Congresso Latinoamericano da Democracia Cristã, em Montevidéu, no ano de 1947, Sobral Pinto era, grosso modo, um sujeito de direita. Votava sempre, por exemplo, na UDN, o partido liberal-conservador de Carlos Lacerda. Além disso, defendia um anticomunismo feroz. Seu último livro publicado, inclusive, já nos de 1980, foi escrito inteiramente para atacar a Teologia da Libertação de orientação marxista, defendida por Leonardo Boff e outros. Seguindo a orientação, porém, de seu mestre Santo Agostinho, Sobral distinguia sempre, com toda a clareza, de um lado o pecado, que há de se combater com toda a força, e de outro lado o pecador, com que se há de ter toda misericórdia.

Assim, sempre, absolutamente sempre que uma pessoa era injustiçada, sobretudo pelo poder público, lá se punha então ao seu lado aquele que era conhecido como Senhor Justiça. E isto sem jamais levar em conta, nem por um segundo, as divergências políticas e ideológicas, por vezes enormes, que se tinha com a vítima. Quando Luís Carlos Prestes, por exemplo, foi preso e submetido às condições mais degradantes pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, nenhum advogado no Brasil sequer cogitava a hipótese de defender o icônico líder do Partido Comunista Brasileiro. E, no entanto, lá se foi espontaneamente fazê-lo o Doutor Sobral, mesmo com seu antimarxismo feroz. Mais: quando o governo Vargas recusou-se a melhorar as condições da cela de Prestes, o advogado católico invocou o recém-publicado código de defesa dos animais, dizendo que o Estado estava tratando um homem como não admitia tratar um cachorro. E quando Olga, a esposa judia de Prestes, foi exilada para a Alemanha nazista, foi também Sobral quem garantiu que ao menos a filha dos dois pudesse retornar ao Brasil e ser educada pelo pai.

A mesma coisa perante a ditadura de 1964. Doutor Sobral não apenas denunciou publicamente o golpe, recusando-se a cair na farsa de chamá-lo de Revolução, como também passou décadas defendendo gratuitamente presos políticos, alguns dos quais guerrilheiros envolvidos com a luta armada. De fato, pensava ele, de maneira absolutamente cristã: não importa a razão pela qual uma pessoa foi presa, não interessa quão bárbaro tenha sido o seu crime, uma vez que o sujeito foi desarmado e colocado sob a tutela do Estado, é uma obrigação moral absoluta do governo tratar o prisioneiro de maneira digna. Puni-lo sim. Interrogá-lo sem dúvidas. Mas jamais torturar. Jamais expôr ao pau-de-arara ou aos choques elétricos. Jamais induzir mulheres presas ao aborto. Jamais negar a dignidade humana que se encontra ali, criada à imagem e semelhança de Deus.

Em tempos confusos como os nossos, ouvir a voz de Sobral nos áudios revelados esta semana é reconfortador. É perceber como estão inteiramente errados todos estes apostolados virtuais cristãos que apostam numa Guerra Cultural, num conflito sem limites, num jogo de nós contra eles no qual vale tudo para derrotar o outro lado – algo que nada tem que ver com o Evangelho, por muito que se invoque o seu nome em vão.

A Comunhão Popular se inspira no exemplo e na santidade do Senhor Justiça. Como ele, queremos sempre manter firme a nossa fé em Cristo e a nossa fidelidade integral à doutrina que Ele nos legou. Mas como Sobral também, queremos sempre ter os olhos atentos para defender toda e qualquer pessoa vítima de injustiça, mesmo que essa pessoa defenda as pautas mais anti-cristãs. Foi isto, afinal, que Cristo nos ensinou, sendo Ele mesmo torturado e morto numa cruz.

Que esta lição esteja sempre viva em nossos corações, sobretudo num país em que a tortura e as condições de vida absolutamente degradantes ainda são infelizmente a regra do sistema prisional.

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