Se há uma luta que a Comunhão Popular tem levado adiante desde o seu primeiro dia de atividade pública, esta luta é a superação de visões dualistas e simplificadoras da história nacional. Foi assim, por exemplo, em nosso post sobre o dia 22 de Abril, em que mostramos ser falsa a polêmica invasão vs descobrimento. Será assim também hoje, dia 13 de Maio, em que fazemos memória da Lei Áurea, documento que deu cabo da maior chaga da história brasileira: a escravidão.
De fato, na opinião pública do Brasil, consolidam-se hoje duas visões opostas e incompletas sobre o fim da escravidão em nosso país. De um lado, conservadores apresentam o abolicionismo de forma grandiosa, como um heroico movimento nacional, pacífico, conduzido por líderes idealistas e abnegados, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, e que só se realizou graças à generosidade sem igual da princesa Isabel, chamada a Redentora, que preferiu perder seu trono a manter a escravidão. Do outro lado, progressistas negam todo valor ao movimento da abolição, vindo de cima, como uma concessão das elites; afirmam que a escravidão não veio ao fim em virtude de uma simples lei – bem tardia, aliás -, mas por motivos econômicos, associados ao avanço do capitalismo industrial no mundo todo; e que seria meritória apenas a mobilização e resistência feroz dos debaixo, em especial dos próprios negros, que não esperaram nenhuma redentora e agiram por si mesmos, construindo quilombos, o mais famoso dos quais liderado por Zumbi dos Palmares.
Cada um dos lados radicaliza o debate numa direção. Nisso, porém, se perde de vista a verdade essencial, isto é, que a história brasileira, como a de qualquer país, é complexa, ambígua e até mesmo contraditória – não uma narrativa simples, de mocinhos e vilões. Vamos, pois, colocar os pingos nos is.
Por um lado, é verdade que o movimento abolicionista é uma das maiores glórias da vida cívica do nosso país, que reuniu intelectuais brilhantes e promoveu uma grande transformação social sem uma gota de sangue derramado? Sim, é certo. É verdade também que a família imperial apoiou pessoalmente a causa da abolição, que Dom Pedro II alforriou seus escravos muito antes de qualquer obrigação legal e que, ao assinar a Lei Áurea, o Império sacrificou a sua última base social de apoio, os latifundiários escravocratas? Sem dúvida. Não foi à toa que o Barão de Cotegipe, único senador a votar contra o projeto de libertação dos escravos, disse à princesa Isabel que ela acabava de redimir toda uma raça, mas sacramentava a perda de seu trono e precipitava a República. Tampouco foi à toa que o papa Leão XIII, depois de ter escrito uma encíclica aos bispos brasileiros para exigir o fim do trabalho escravo, presenteou a princesa Isabel com a Rosa de Ouro por seu engajamento na Lei Áurea.
Por outro lado, é também verdade que a abolição está muito longe de ser uma simples benesse ou boa vontade do governo? Certamente. Na verdade, o Brasil traz consigo a vergonha de ser o último país das Américas a proibir o trabalho escravo. E a Monarquia, se teve seu belo papel no final, passou décadas fazendo bem menos do que podia. Na mesma direção, é justo e necessário valorizar a Lei Áurea não como um presente, mas como uma conquista, árdua e sofrida, de milhões de escravizados que resistiram por séculos às seguidas violências aplicadas contra eles? É óbvio. Resistência expressa das mais diversas maneiras, muitas das quais trágicas. Das fugas em massa e construções de quilombos ao altíssimo percentual de suicídio entre escravos que preferiam morrer a ser tratados como coisas. Dos que juntavam dinheiro de gorjeta a fim de comprar sua alforria até aqueles que sincretizaram os orixás africanos com os santos católicos para preservar seu credo, sem desafiar explicitamente seus senhores. Da Revolta dos Malês, motim de negros muçulmanos que sacudiu Bahia em 1835, às fascinantes reduções jesuíticas, nas quais vários povos indígenas, sob a liderança de missionários europeus, conservaram a sua identidade comunitária e resistiram à captura por colonos e bandeirantes, que queriam torná-los cativos.
Tanto um lado quanto o outro têm sua cota de razão e de distorção e, portanto, não é preciso nem saudável tomar partido unilateral de um deles. Não é preciso escolher entre a princesa Isabel e o Zumbi dos Palmares. As duas figuras podem ser lembradas com respeito e veneração, mas como figuras humanas, falhas, cada uma delas com seus respectivos pecados, e que possuem, cada qual a seu modo, um importante significado histórico e simbólico – até mesmo mítico -, seja ele maior ou menor, na identidade da pátria. Tampouco é preciso escolher entre 13 de Maio, aniversário da Lei Áurea, e 20 de Novembro, dia da Consciência Negra. Ao contrário: ambas as datas podem e devem ser valorizadas, como dias importantes para a memória do país.
Na realidade, mais do que perder tempo com partidarismos e polêmicas irracionais, o que o Brasil precisa é olhar com maturidade para o seu passado. No que diz respeito à questão racial, o que necessitamos é reconhecer que, infelizmente, a libertação dos escravos ainda é um processo incompleto. Já em 1888, o grande Joaquim Nabuco advertia que não bastava abolir a escravidão, era preciso abolir também a obra da escravidão, que afetou negativamente, em proporções distintas, toda a população brasileira. Seu apelo, infelizmente, não foi ouvido.
Ainda em 1823, José Bonifácio, o Patriarca da Independência, apresentou um largo projeto de inclusão social para os alforriados, garantindo a estes a posse de terras particulares e o acesso à educação. O movimento abolicionista posterior aprofundou ainda mais esses ideais e tinhas muitas propostas neste sentido, algumas das quais encampadas pela princesa Isabel. Derrubada a Monarquia, porém, nada se fez, e a República, que tanto falava em liberdade, não fez mais do que deixar os ex-escravos entregues à própria sorte. Ainda há, no entanto, tempo para a reparação desta grave injustiça.
Eis o que almeja, sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular.