“Canudos era um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha de tudo. […] Quem tinha roça tratava da roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. […] Não havia precisão de roubar em Canudos porque tudo existia em abundância, gado e roçado, provisões não faltavam.”
Honório Vilanova, sobrevivente de Canudos
Segundo Ariano Suassuna, patrono da Comunhão Popular, a Guerra de Canudos não é apenas um evento histórico. Muito mais do que isso, ela é um mito fundador do Brasil, um símbolo vivo de nossa história e de nossas potencialidades.
E de onde vem toda essa força de Canudos? Ora, diz Suassuna, vem do fato de que ali, clara e distintamente, confrontaram-se as duas grandes forças da sociedade brasileira: o Brasil real, “que é bom e revela os melhores instintos”, versus o Brasil oficial, “que é caricato e burlesco”.
O Brasil oficial, encarnado naquele tempo na República Velha que dizimou Canudos, é o Brasil das elites: urbano, litorâneo, aburguesado, democrático, capitalista, racionalista, progressista, imposto desde cima, antipatriótico, alheio aos dramas nacionais, pautado por ideologias estrangeiras (na época, o positivismo; hoje, o pós-modernismo).
Por sua vez, o Brasil real, encarnado então por Antônio Conselheiro e seus seguidores, é o país autêntico e do povo: rural, interiorano, camponês, monárquico, “socialista”, profundamente religioso, conservador, construído pelos debaixo, patriota, tradicionalista e bem fincado em suas raízes históricas – negras, indígenas e sobretudo ibéricas.
Passados mais de cem anos, este ainda é, de um modo ou de outro, o conflito fundamental de nosso país. E neste conflito, assim como Suassuna, a Comunhão Popular tem lado.
Para nós, tal como para Ariano, Canudos será sempre a utopia maior do Brasil profundo.