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COMO PENSAR EM UMA BASE INDUSTRIAL DE DEFESA NO BRASIL

Encontra-se no aguardo de votação na Câmara Federal um projeto de lei (PLP 244/20) que propõe conceder a empresas nacionais o mesmo tratamento favorável no pagamento de impostos que se concede a empresas estrangeiras, hoje isentas de diversos encargos quando vendem produtos ou serviços para nossas Forças Armadas (Exército, Marinha, Aeronáutica) e de Segurança Pública (polícias). Ou seja, propõe isonomia tributária. Uma vez que isto pode favorecer a BIDS (Base Industrial de Defesa e Segurança) do Brasil, a ABIMDE (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança) vem divulgando o projeto e atuando para que seja votado.

Por que o assunto interessa a nós da Comunhão Popular, e por que este interesse coincide com o da ABIMDE? A resposta implica abstrairmos um pouco da questão específica do PLP 244/20, e refletirmos noutro plano sobre o sentido das políticas de defesa no Brasil. O historiador Fernand Braudel pode nos ajudar neste exercício.

Quando propôs no imediato pós-II Guerra uma “história geográfica” associada à longa duração, Braudel contribuiu para dar visibilidade a novas maneiras de perceber questões geopolíticas. Na sua perspectiva geo-histórica de “longa duração”, as dinâmicas associando geografia e política podem ser estudadas levando em conta muito mais que o estado, seu território e seus desafios, nesta ou naquela conjuntura. Elas são vistas de maneira integrada, abarcando toda a sociedade, em suas múltiplas manifestações e na variabilidade dos seus entornos, em tempos extensos.

Junta portanto história no longo prazo, geografia e política. Pois é nesta perspectiva mais difícil e abrangente que podemos melhor enquadrar qualquer conversa a respeito de política de defesa no Brasil, ou seja, qualquer discussão acerca dos instrumentos que servem à segurança do País em termos geopolíticos (ou seja, não meramente policiais ou internos).

E no nosso caso, esses termos geopolíticos são bem próprios e até aqui favoráveis. Ao contrário de outros grandalhões (China, Estados Unidos, Índia, Rússia…), o Brasil definiu pacificamente suas fronteiras, vive em um entorno sul-americano e sul-atlântico livre de bases nucleares e se envolveu em poucas guerras nos últimos duzentos anos.

Ainda assim, guerras volta e meia acontecem em nosso entorno. E exigem respostas à altura. Para ficar no século XX, o “civilista” Ruy Barbosa levou a jovem República à escolha de se juntar aos Aliados em 1917, rompendo neutralidade insustentável. Rio-Branco, decisivo na conformação pacífica do território nacional, também agiu para dotar o Brasil de meios navais, em benefício da estabilidade regional no seu tempo. Celso Furtado foi tenente na Força Expedicionária Brasileira, um dos muitos brasileiros a lutar na II Guerra. Em 1982 e depois, foram necessários discernimento e prudência para evitar desdobramentos indesejados da guerra das Malvinas. E a descolonização na costa africana sul-atlântica se deu em meio a guerras sofridas, com ingerência externa e apoio brasileiro às novas repúblicas do outro lado do mar, às vezes a uma distância menor do nosso território que a existente entre a Paraíba e o Rio Grande do Sul.

Com a redemocratização do País e não sem controvérsias, reemergiu no debate público, ainda que muito discretamente, a consciência de que o Brasil necessita de poder dissuasório. O assunto foi deixando de ser visto como exclusividade das Forças Armadas e ganhou presença na academia. Afinal, nem só de “soft power” um país rico e grandalhão pode depender para manter a paz em seu entorno estratégico (no nosso caso, sobretudo América do Sul – Amazônia em especial – e Atlântico Sul). No período que vai aproximadamente de 2005 a 2012, chegou-se inclusive a construir uma Política e uma Estratégia Nacionais de Defesa, articulando segurança, política externa e desenvolvimento econômico. Independente de juízos sobre elaboração e grau de coerência interna, foram conquistas positivas. Em 2012, culminaram na adoção da Lei 12.598, ponto de inflexão para nossa Base Industrial de Defesa. Previa-se ali desoneração tributária para empresas estratégicas do setor e fomento à inovação tecnológica, buscando favorecer o enlace de pesquisas civis e militares.

Mesmo que gerido entre nós de maneira espasmódica nos últimos dez anos, ao sabor de conjunturas internas e externas desfavoráveis, fato é que se trata de um campo de atividades diretamente relacionado ao desenvolvimento humano, tecnológico e científico do País. Não se aplicam indiscriminadamente a ele as mesmas dinâmicas simples de ganho de custo e escala obtido no desmembramento de cadeias produtivas globais.
É à luz de todas estas considerações – e paradoxalmente apenas numa perspectiva de longa duração – que se descortina o sentido do debate sobre políticas de defesa em moldura geopolítica hoje, e se pode formar juízos sobre iniciativas conjunturais como esta de agora, do PLP 244/20 sobre isonomia tributária para produtos e serviços de interesse de nossas forças armadas e de segurança pública.

Perceber tudo isto exige tempo e algum esforço mesmo – mas isto hoje se faz mais urgente, em face do aumento das tensões políticas em todo o mundo. Sustentação de um entorno sem armas nucleares mediante reforço de poder dissuasório convencional, vigilância da Amazônia (a “verde” primeiro mas também a “azul”, marítima, equivalente a uns 50% da nossa área continental), presença naval no Atlântico Sul (por onde passa a quase totalidade de nosso comércio exterior), proteção cibernética, gestão das fronteiras, e mesmo recuperação de partes do território onde o estado não exerce controle pleno – todas estas necessidades aparecem, enfim, mais nítidas e até prementes quando seguimos a sugestão “geo-histórica” de Braudel, pensando em dinâmicas de longa duração, nas suas instabilidades e surpresas.

Nós, da Comunhão Popular, entendemos que somente com ampla participação social, memória histórica e perspectiva de longo prazo é que poderemos formular juízos sobre estas demandas e encaminhá-las. Seja considerando as mais estratégicas, macropolíticas, seja as mais específicas, como a de escolher instrumentos adequados para firmar a BIDS. Porque entendemos que sim, o País necessita de uma sólida base industrial de defesa e segurança. Ela funciona como apólice de seguros, tanto mais relevante quanto maiores são os riscos – e não é como se o cenário em 2022 fosse de zero risco, mesmo em zona inclinada à paz e à cooperação, como é a do entorno sul-americano e sul-atlântico do Brasil.

A aprovação do PLP 244/20 viria ao encontro da montagem desta apólice. Em última análise, ao encontro de um projeto mais amplo : o da criação de uma rede de confiança regional que não seja mera utopia, que sirva concretamente à promoção da paz no Brasil e no seu entorno.

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