A frase do título deste post, de autoria de André Franco Montoro (1916-1999), lança um desafio. Apesar de a Constituição Federal estipular que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações” (art. 4º, parágrafo único), muitos brasileiros tratam esse comando com preconceitos ideológicos, como se fosse coisa de “liberal” ou, principalmente, de “bolivariano”. Seria a integração latino-americana uma necessidade para o Brasil? E em caso afirmativo, qual integração?
A nossa Constituição Federal refere-se a um tipo específico de integração, com o objetivo de formar uma “comunidade latino-americana de nações”. Não se trata de um mero exercício de liberalização econômica, de abertura de mercados, de um espaço de livre circulação de bens e capitais. Tampouco se trata de uma “Pátria Grande”, que subtrai a peculiaridade de cada país em favor de uma suposta nação latino-americana que não existe. Muito menos prevê a adoção de políticas “irreversíveis” ou o apoio a governos companheiros, de modo a tirar a política do controle democrático a que os governos nacionais estão, de alguma forma, submetidos.
Voltemos a Montoro para tentar entender a “comunidade latino-americana de nações”. O ex-governador de São Paulo, prócer da democracia-cristã e advogado da integração latino-americana, sempre foi um defensor da centralidade da noção de comunidade. “Comunidades”, para ele, “são todas as instituições em que homens participam solidariamente na promoção de um bem comum” e o Estado, portanto, é uma grande “comunidade de comunidades”. Se o leitor acompanha a Comunhão Popular, sabe que também nós somos convictamente comunitaristas, Para nós, a comunidade é traço desejável e inevitável da existência humana. Seres humanos, sociedades e países não são átomos, “bolas de bilhar”, mas vivem unidos à comunidade moral da qual fazem parte, quer queiram, quer não.
Ora, a comunidade a que o Brasil pertence é a comunidade latino-americana. Essa é uma constatação derivada da inevitabilidade da geografia, dos laços culturais e religiosos, das vidas paralelas na história política, das coincidências nos desafios sociais e econômicos. Fingir que somos “americanos”, europeus, africanos ou simplesmente “ocidentais” é querer ser o que não se é, como se por um passe de mágica nossos problemas latino-americanos sumissem. Achar que o Brasil tem um rumo próprio, separado do resto da América Latina, também é um erro: toda vez que escolhemos essa opção, acabamos mais sujeitos a potências extrarregionais.
Tudo isso não é apenas uma observação abstrata. Há uma forte tendência internacional de constranger as opções disponíveis para os países latino-americanos. Para as forças neocoloniais que ameaçam nossa região, precisamos estar alinhados com a “comunidade internacional” (leia-se, submeter-se aos interesses dos EUA), precisamos “progredir” (leia-se, aderir a pautas progressistas); precisamos “nos libertar” (leia-se, imitar a obsessão dos EUA por armas, livre-comércio, Israel e “regime change”); precisamos “seguir os padrões internacionais de sustentabilidade” (leia-se, fazer o que os outros querem que façamos com as nossas florestas). Em resumo, querem-nos mais submissos, descaracterizados e, no final das contas, “atrasados”.
Aliás, para quem julga que integração latino-americana é “URSAL”, “plano globalista” ou “estratégia maligna do Foro de São Paulo”, é importante lembrar que esta é na verdade uma pauta clássica não apenas de Franco Montoro, mas de todo o movimento democrata-cristão do nosso subcontinente, desde as suas origens. É uma demanda consignada na Declaração de Montevidéu, de 1947, que deu origem à ODCA (Organização Democrata Cristã da América). Foi bandeira histórica de figuras como Eduardo Frei Montalva, Rafael Caldera e Alceu Amoroso Lima. E é uma pauta que levou Montoro não apenas a redigir o parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal, como também a pôr na Carta Magna de 1988 a obrigação do ensino do idioma espanhol de nossos vizinhos no ensino básico. Foi ainda, tema que avançou continuamente nos governos da Nova República, desde seu início, independentemente da posição de cada um no espectro ideológico.
A formação de uma comunidade latino-americana de nações é a forma de agarrarmos nosso próprio destino. Só assim construiremos um espaço civilizatório nosso, democrático, livre, solidário, mestiço, cristão, sustentável e resiliente a forças neocoloniais estrangeiras. Orgulhoso, sim, de suas raízes europeias, indígenas, africanas, e que evolui sem perder sua identidade. Com indústria e comércio condizentes com o potencial de nossos povos. Uma comunidade que seja capaz de enfrentar, junta, os desafios tanto de ordem econômica, mas de saúde, de infraestrutura, de combate ao crime organizado e de preservação ambiental.
Trata-se de uma tarefa difícil, que não avançará sem ação incisiva do Brasil, maior país da região, mas é também uma missão incontornável. Já avançamos bastante, com iniciativas como o MERCOSUL, a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e projetos como os corredores viários bioceânicos, mas ainda há muito o que percorrer. Nós, da Comunhão Popular, não temos medo da dificuldade e abraçamos a causa da integração latino-americana. Não para copiarmos a União Europeia ou alimentarmos delírios do “socialismo do século XXI”, mas para superarmos nossos reais atrasos e tomarmos as rédeas do nosso próprio futuro.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular