Conforme vai se aproximando a disputa eleitoral para a presidência, sobretudo no cenário de polarização cega que governa o país, um triste fato tende a se tornar cada vez mais comum, semana após semana, domingo após domingo, nas milhares de igrejas espalhadas pelo Brasil: a transformação do altar e do púlpito religioso em espaço de palanque político.
Quem frequenta missas e cultos com regularidade, infelizmente, sabe como é. Uma quantidade gigantesca de padres e pastores, em todo o país, ao invés de se concentrar no seu ofício, que é o de anunciar o Evangelho, simplesmente decide usar o precioso tempo da pregação para manifestar sua preferência política – exaltando aquele candidato em quem vai votar, indicando-o como a escolha necessária de todos os cristãos e condenando como pecadores os fiéis que assumirem outro ponto de vista. Cria-se, assim, um clima de coação e constrangimento, em que só aquele que vota em Fulano é visto pela sua comunidade como um bom cristão. A política eleitoral toma o lugar da fé no Redentor e questões mundanas assumem aquela centralidade que só deve caber ao Reino de Deus.
Pouco importa, nesse fenômeno absurdo, em benefício de quem o líder religioso está falando – se para defender voto em Bolsonaro e outras figuras de direita (como se tornou comum hoje); se para defender voto em Lula e demais figuras de esquerda (como era mais comum no passado); ou se para defender qualquer outro candidato. O templo é um espaço consagrado para o culto a Deus. É Ele, e somente Ele, que deve ali ocupar o centro: ser adorado, glorificado, bendito. São as orientações d’Ele para a nossa vida que devem sair da boca do sacerdote – nada mais.
Obviamente, padres e pastores são cidadãos, como todos os outros, e têm direito às suas preferências políticas. Inclusive, têm o direito de manifestá-las em público. Nós mesmos, da Comunhão Popular, possuímos em nossas fileiras algumas pessoas que são especialmente consagradas à vida religiosa: dois padres católicos, um diácono da Igreja Ortodoxa, um pastor evangélico, uma freira e um frei. Nós nos orgulhamos desses companheiros que militam conosco. Da mesma forma, procuramos, de modo público e franco, marcar reuniões com diferentes autoridades espirituais, a fim de apresentar nossas ideias, construir pontes e receber conselhos. Uma coisa, porém, tem que estar muito clara para todos: quando sobe no altar e prega para sua comunidade de fé, o padre e o pastor não estão agindo na qualidade de cidadãos, mas de líderes religiosos.
Que o pastor de uma comunidade use suas redes sociais para apresentar seu voto, muito que bem. Desde que ele faça isso com prudência e sem coagir consciências, não há nada de mal aí. Que no dia da eleição, ele vá à urna com um botom de seu candidato, perfeito. Que ele se disponha a ir à manifestação ou ao comício do partido de sua preferência, ok. Tudo isto é direito dele, a não ser que as normas canônicas de sua própria comunidade religiosa mandem o contrário. O que ele não pode, porém, em hipótese alguma, é se utilizar do seu ofício religioso, do espaço da igreja e do tempo do culto para propagar ideias particulares que nada tem que ver com a Salvação.
Como explicou belamente o Concílio Vaticano II, na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, “É de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralista, que se tenha uma concepção exata das relações entre a comunidade política e a Igreja, e, além disso, que se distingam claramente aquelas atividades que os fiéis, seja sozinhos ou em grupo, desempenham em seu próprio nome, como cidadãos guiados pela sua consciência de cristãos, e aquelas atividades que os fiéis que exercitam em nome da Igreja e em união com os seus pastores”. Como se vê, uma coisa é o cristão atuando como cidadão – sempre iluminado por sua fé, é claro, mas como cidadão apenas –; outra coisa bem diferente é o cristão atuando em nome da Igreja.
Por certo, nada disso significa que padres e pastores não podem ou não devem falar de política em suas celebrações. Pelo contrário. A fé cristã, como sabemos, molda todo o jeito de ser daqueles que a vivem, e se torna a própria lente pela qual o cristão vê a realidade. Portanto, o sacerdote pode e deve pregar os ensinamentos do Evangelho acerca da vida social, mostrando de que maneira Cristo nos manda a encarar a realidade política. Mas uma coisa é falar sobre a perspectiva cristã sobre a política assim, de forma geral. Outra coisa, bem distinta, é indicar voto em Fulano ou Sicrano.
Esta, aliás, foi precisamente a resposta que o Santo Padre Pio XII, na época ainda apenas Secretário de Estado do Vaticano, deu aos bispos daquele país no início dos anos 30, quando quiseram obrigar formalmente os católicos chilenos a votar apenas no Partido Conservador. “Sem dúvida, a Igreja não pode se desinteressar da verdadeira ‘grande política’, que visa o bem comum e faz parte da ética geral, no sentido promover e defender o caráter sagrado da família e da educação, os direitos de Deus e das consciências” – disse então o futuro papa – “Coisa diferente é se se trata de ‘política partidária’, isto é, dos agrupamentos de cidadãos que se propõem a resolver os problemas econômicos, políticos e sociais segundo as suas próprias escolas ou ideologias, e que, mesmo que não se desviem da doutrina católica, podem chegar a diferentes conclusões”. E arrematou: “Um partido político, mesmo que se proponha a se inspirar na Doutrina Social da Igreja e a defender seus direitos, não pode se arrogar a representação de todos os fiéis, pois seu programa concreto nunca terá valor para todos”.
A Comunhão Popular afirma com toda a clareza, em seu manifesto fundador, que é “um movimento político e patriótico de inspiração cristã, pautado pela Doutrina Social da Igreja”. Mas acrescenta também, logo, depois, no mesmo texto, que nós “Não pretendemos falar em nome da Igreja, mas apenas em nosso próprio nome”. Isso não é uma pose ou um jeito de dizer. É uma convicção profunda. Nós, da CP, buscamos, com toda a sinceridade, e não obstante nossas fraquezas, ser o mais fiéis que podemos a Cristo e à sua mensagem. Mas, diferente de certos grupos, não temos a menor pretensão de monopolizar a representação política do Evangelho. Sabemos que há muitos outros, diferentes de nós, e talvez divergentes duros de nossas ideias, que buscam com igual sinceridade preencher a vida pública dos valores cristãos. Por isso mesmos, não aceitamos que o altar se torne palanque de ninguém. Nem de nós, nem deles, nem de nenhum outro.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular