Recentemente, o bordão “É a economia, estúpido!”, disseminado no Brasil pelos “think tanks” liberais a partir da crise de 2014, perdeu tração no debate público com a queda do governo petista. Uma vez no poder, a direita conservadora, que tampouco apresentou bons resultados econômicos, cunhou novo bordão: “É a cultura, estúpido!”. A “guerra cultural”, então, chegou ao país.
Entre as muitas facetas da guerra cultural, uma que chama a atenção no nosso país é um suposto embate entre as formas de expressão da “cultura popular” e o que alguns segmentos chamam de “alta cultura”. Seria uma disputa pela hegemonia cultural do país, na qual se misturam ingredientes bastante diversos. Como a Comunhão Popular se posiciona diante deste embate? Sem pretender esgotar o tema num único post, gostaríamos de introduzi-lo em algumas linhas.
Por um lado, a revolução progressista avança a passos largos sobre o Ocidente. Como se sabe, depois do fracasso do comunismo marxista, o proletariado cedeu o papel de classe revolucionária aos mais diversos grupos socialmente marginalizados, como queria Marcuse. O campo de batalha migrou da “infraestrutura” (econômica) para a “superestrutura” (ideológica). Multiplicaram-se ideologias que negam ou pervertem a ordem natural, a razão metafísica e os valores cristãos, sob o apelo da promessa de promover a liberação de tradicionais estruturas opressoras e preconceituosas. Na expressão do cardeal Robert Sarah, foi instalado, assim, o “neobarbarismo pós-humano”, que, ao negar a Deus, negou também o próprio homem, levando todos ao desespero do existencialismo ateu e do niilismo pós-estruturalista.
Esta revolução cultural, vale dizer, chegou tão longe somente porque recebeu apoio dos grandes capitalistas. Como a família e os valores verdadeiramente cristãos contrariam os projetos de poder e de riqueza, pois funcionam como diques que contêm a correnteza do consumismo mercadológico, as grandes empresas instrumentalizam pautas identitárias e desconstrucionistas para dissolver estes obstáculos. Aburguesada e individualista, a nova esquerda, por sua vez, já não contesta o sistema econômico capitalista e aceita de bom grado a mão que se lhe estende. Assim, liberalismos de esquerda e de direita dão-se as mãos.
Em termos práticos, hoje a política já não é o principal terreno de ação da esquerda pós-moderna. A nova esquerda dissemina suas ideias pelo mercado de consumo, pelos espaços ocupados nas escolas e universidades, mas, sobretudo, discutindo BBB, novelas, filmes da Netflix, vida das celebridades e tudo que diga respeito ao universo cultural das classes marginalizadas indicadas por Marcuse.
Dentre tudo, um dos recursos mais empregados pela revolução progressista é a penetração nas manifestações culturais, sobretudo, nas expressões populares. Ao mesmo tempo em que se intitulam os únicos defensores da cultura popular, em oposição a padrões que seriam impostos por forças retrógradas, buscam alterá-la para enquadrar-se em seus dogmas. O carnaval é o exemplo máximo disso: uma festa popular tão rica e tradicional tornou-se um caldeirão receptor de toda sorte de ideologias desconstrucionistas pós-modernas. A cada ano o festejo recebe mais elementos de transgressão. O que falta de pano e pudor aos foliões sobra de problematizações contestando as letras das marchinhas, a “apropriação cultural” das fantasias, etc.
E não para por aí! Assim como o carnaval, a “cultura de periferia” desceu subitamente de Cartola ao funk proibidão, mas ai de quem ouse criticar tal declínio e decadência! Igualando todas as formas de manifestações culturais, a nova esquerda rechaça juízos de valor moral ou estético, vistos como sinais de opressão. Ressalvas quanto à influência estrangeira sobre essas manifestações, ainda que as descaracterizem e subordinem. Provindo dos centros internacionais irradiadores da revolução progressista, tudo é bem-vindo. Não sendo este o caso, porém, qualquer voz dissonante é calada pela patrulha revolucionária, que difama e “cancela” todo e qualquer um que se levante contra este estado de coisas.
Nos últimos anos, surgiu contra isso uma reação dos conservadores. Propondo uma revolução gramsciana de sinal trocado, lançaram-se na tal “guerra cultural” levantando a espada da “alta cultura” para salvar a “civilização ocidental” da degeneração promovida pelos “comunistas”. Saber o que é a tal “alta cultura”, porém, é difícil. Música clássica, arquitetura pré-modernista, cânones da literatura ocidental dão algumas pistas, mas não é um conceito bem definido. Em alguns casos, vem acompanhado de exaltação de temas medievais, outras de um retorno à “Belle Époque” do século XIX. Parece, a princípio, algo positivo. No entanto, dois problemas costumam surgir nos círculos de “alta cultura”. Primeiro, há a tendência de a “alta cultura” ser reduzida a mero produto comercial lucrativo nas mãos de marqueteiros profissionais. Além disso, não é incomum o desprezo pela cultura popular, especialmente a nacional, tratando com nojinho o futebol, o carnaval e tudo o que supostamente careça de requinte e sofisticação.
O que escapa aos dois lados é que não existe civilização sem “cultura popular” e “cultura erudita”, não havendo nenhum problema na coexistência de uma e outra. Ambas são manifestações culturais autênticas, que expressam o bem universal cada uma ao seu modo, concretizando-o diversamente segundo os povos e os tempos. Além disso, a diversidade cultural é sinal de saudável alteridade, isto é, de oportunidade de encontro com o Outro e de enriquecimento mútuo. É essa diversidade que faz do brasileiro uma “raça cósmica” e um povo “mestiço de carne e espírito”, marcado pelos laços de fraternidade e solidariedade.
Cultura popular e cultura erudita costumam se retroalimentar, com ganhos mútuos. No caso brasileiro, gigantes da nossa cultura erudita são justamente aqueles que, em uma fertilização cruzada, conseguiram assimilar elementos populares: Heitor Villa-Lobos, na música; Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, na literatura. O caso de Ariano Suassuna, nosso patrono, merece atenção especial. O Movimento Armorial fundado por ele tinha como objetivo explícito a construção de uma cultura erudita nacional a partir dos elementos populares profundos da brasilidade nordestina. Um sonho que a Comunhão Popular continua sonhando.
No sentido inverso, a lista também é extensa. Hekel Tavares, Radamés Gnattali, Guerra-Peixe, Waldemar Henrique e outros compositores eruditos que contribuíram tanto para a música popular: o que dizer sobre as interpretações de Tavares por Inezita Barroso, cantora importantíssima para o resgate de nosso folclore? Tom Jobim com as influências de Debussy, Ravel, jazz, samba e moda de viola, cheio de originalidade e inconfundivelmente nacional. A literatura de cordel que guarda memória de “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, tema que ainda virou samba-enredo do Salgueiro em 1990. O “Céu de Santo Amaro”, de Flávio Venturini e Caetano Veloso, que naturaliza cantata de Bach. Isso tudo sem falar no choro, um caso de fusão de influências das mais diversas (das valsas e polcas aos batuques do lundu), que já não se mais sabe dizer se é erudito ou popular.
Por tudo isso, nós, da Comunhão Popular, consideramos que o embate entre “cultura popular” e “alta cultura” é falso e não diz respeito às questões reais da deterioração da cultura nacional. O verdadeiro problema ocorre quando a desvalorização de ambas prepara terreno para a invasão de certa cultura “pop”, que sacrifica as manifestações artísticas e culturais autênticas no altar do mercado de consumo capitalista. Um país que renega seu povo nega a si mesmo; um país que nega sua herança é fadado a viver em um “eterno presente”, desértico, “cancelador”, estéril. Esses dois problemas, juntos, deixam nossa cultura refém dos padrões exportados pela indústria cultural progressista. Em pouco tempo, a vida cultural é dominada pela produção de obras pasteurizadas, voltadas a atender ao grande público massificado e a disseminar ideologias pós-modernas.
Qual seria, então, o caminho correto a ser seguido? Ensina o pedagogo espanhol Alfonso López Quintás que “viver culturalmente é viver com responsabilidade, respondendo ao apelo de grandes valores”. A cultura brota do espírito e, por meio dela, o homem aperfeiçoa e enriquece a criação de Deus. Consiste, portanto, em uma forma de diálogo e uma extensão da relação do homem com o Criador. A cultura não se resolve por si mesma, mas se reporta a valores superiores. O problema da guerra cultural, no final das contas, é moral e espiritual.
São várias as formas de existência da cultura, mas a sua essência é uma só e deve sempre ser observada, pois uma cultura decadente e imanentista, dissociada do que lhe há de essencial, pavimenta o caminho para a infelicidade de todos. O filósofo tomista argentino Octávio Derisi diz que a essência da cultura é ajustada à verdade e aos bens transcendentais. Ou seja, nacional ou estrangeira, religiosa ou profana, popular ou erudita, a essência da boa cultura não é medida pelo maior ou menor grau de erudição ou de refinamento técnico e intelectual. O critério fundamental é a sua capacidade de orientar o homem para fora e além de si, por meio da contemplação e da caridade. Ou, pelo menos, a sua capacidade de oferecer um divertimento saudável e honesto, que não desvie o homem da sua vocação para a eternidade e do seu fim último.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular