Há algo errado na relação dos brasileiros com suas cidades. Caminhamos passivamente por avenidas de brisa ardente, cercadas de andares e andares de concreto e inexpressividade. Sobem espigões com micro-apartamentos feitos sob medida para uma cama, uma televisão, muitas tomadas, um banheiro e algum tipo de apoio para comer. Os sobrados trocaram as varandas e alpendres por portões de metal e arame farpado. Para os mais desvalidos, a opção é o terreno irregular, em que se constrói com o que se tem, na torcida por uma temporada de chuvas fracas. As árvores sumiram das ruas, não há sombra nem qualquer tipo de frescor gratuito, os rios estão apodrecidos e os trabalhadores viajam longas horas todos os dias de casa ao serviço. Tudo isso é aceito como inescapável parte do progresso.
Esse não é o retrato apenas do Brasil, mas da maioria dos países em desenvolvimento. O que mais assusta, porém, é que as tentativas de solucionar esses problemas se voltam apenas para a verticalização, a densidade e o uso de tecnologias. Para os ricos, é claro, há a possibilidade de condomínios fechados, isolados dos problemas e conectados por vias rápidas à cidade. Para os demais, porém, só há duas opções de proposta urbanística: aqueles que, com a boa intenção de aproximar a população de baixa renda dos serviços urbanos, pregam residências menores, verticais e mais padronizadas, desde que conectadas a vias rápidas que levem para os locais onde se vive de verdade, como parques e “aparelhos culturais”, que por alguma razão estão afastados das residências; ou aqueles que, reconhecendo corretamente a insalubridade da cidade brasileira contemporânea, defendem a fuga para os subúrbios, idealizados à moda americana, desde que também conectados a vias rápidas para não ficarem isolados.
Essas duas alternativas ignoram necessidades básicas do ser humano: senso de pertencimento à comunidade local, admiração pelo belo, tempo para a família, acesso direto aos serviços básicos e à vida cultural da cidade e adaptação às condições climáticas. Nenhuma delas buscar estabelecer um diálogo sobre moradia e urbanismo como o povo. Para um mundo acelerado, pouco acolhedor e comprimido, propõem mais velocidade, menos refúgio e mais compressão, tudo pré-fabricado, cinza, retilíneo e estéril.
Fecham-se, ainda, aos desafios impostos pelo clima brasileiro, frente as quais a nossa arquitetura tradicional, já descrevia Gilberto Freyre, tem trazido soluções desde os tempos coloniais, muitas delas trazidas da Índia pelos portugueses. Soluções que são descartadas como antiquadas, sinais de “atraso”, e que sem dúvida tem suas falhas, mas também guardam conhecimento ancestral sobre como construir em terras brasileiras.
Não precisa nem deve ser assim. Ao se buscar soluções para os problemas urbanos e arquitetônicos, é possível conjugar a preservação da comunidade, respeito pela tradição, conhecimentos científicos, sustentabilidade ambiental e atenção aos pobres. Construir com base na conexão entre o clima, a geografia e a cultura, com participação ativa da comunidade. Essa foi a causa da vida do arquiteto egípcio Hassan Fathy (1900-1989).
Enquanto seus colegas levavam o olhar para os diversos movimentos modernistas e tentavam introduzir padrões europeus no Egito, Fathy, sozinho, tomou um rumo diferente: procurou resgatar os antigos métodos de construção do país para oferecer moradia digna aos pobres. Recorreu a métodos e a materiais tradicionais, integrou a compreensão da situação econômica das zonas rurais com a arquitetura tradicional, incentivou e capacitou os habitantes a construir seus próprios edifícios. As condições climáticas, as considerações de saúde pública e as habilidades dos ofícios desempenhados localmente eram determinantes do seu estilo.
No livro “Construindo com o Povo – Arquitetura para os Pobres” – traduzido no Brasil em 1980 e que chegou a ser estudado em faculdades brasileiras de arquitetura -, Fathy avalia sua experiência de construção de uma vila de agricultores com técnicas extraídas da Núbia (sul do Egito), com casas inteiramente de adobe, material abundante no seu país. A partir dos sucessos e fracassos de sua empreitada, o arquiteto egípcio insiste que “precisamos de um sistema que permita que a forma tradicional de cooperação funcione em nossa sociedade. Devemos submeter a tecnologia e a ciência à economia dos pobres e sem recursos. Devemos acrescentar o fator estético porque quanto mais barato construímos, mais beleza devemos acrescentar em respeito ao homem.”
O que Fathy propôs para o Egito moderno também pode ser estendido ao Brasil. Não necessariamente com tijolos de adobe e abóbadas núbias, mas atento às nossas particularidades. As cidades brasileiras esperam por quem cuide delas, com medidas como o envolvimento das comunidades na definição do planejamento urbano, a renaturalização de nossas cidades com árvores e sombras largas, a recuperação dos rios urbanos e de suas margens, o emprego de materiais disponíveis e técnicas tradicionais que proporcionem resfriamento passivo e escala humana nas construções e nos deslocamentos urbanos. De mãos dados com os conhecimentos técnicos, essas ações podem recuperar o senso de pertencimento do brasileiro em relação ao espaço urbano.
Como Fathy, nós, da Comunhão Popular, queremos construir nossas cidades com o povo. Casas, prédios, praças, igrejas, lojas e ruas estruturados para a vida dos habitantes daquele espaço, não para satisfazer o capital ou delírios megalomaníacos. Com essa postura queremos encontrar soluções para nossa realidade, tropical, carente, criativa, zelosa de sua cultura, e tornar a vida do brasileiro, sobretudo dos mais pobres, mais digna.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular