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EM DEFESA DA FAMÍLIA, CONTRA OS JUROS ABUSIVOS!

O endividamento é um dos grandes flagelos das famílias brasileiras. Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) de julho deste ano, 78% dos lares brasileiros têm dívidas a vencer, dos quais 29% têm contas e dívidas em atraso e 10,7% afirmam que não terão condições de pagar. As dívidas com cartão de crédito respondem por mais de 80% do total. Esses números cresceram no último ano, a despeito de medidas como saques extras do FGTS e a antecipação do 13º salário aos beneficiários do INSS.

A tragédia fica ainda mais escandalosa quando se compara com os lucros dos grandes bancos. Era de se esperar que tão elevado grau de endividamento, conjugado com oito anos de inflação e crescimento econômico muito baixo, fosse repercutir nos rendimentos dos credores por excelência. No entanto, os cinco maiores bancos do país registraram aumento de 20% de seus lucros entre o 2º trimestre de 2021 e o 2º trimestre de 2022. Não se trata de uma novidade, mas de uma notícia que se repete ano após ano, mesmo durante a pandemia.

Esse tipo de desequilíbrio entre devedores e credores não é uma exclusividade do Brasil de 2022. O economista Michael Hudson, após extensa pesquisa com arqueólogos de Harvard, constatou que esse problema já existia nas civilizações mais antigas. Egípcios, babilônios, assírios e outras civilizações viveram experiências semelhantes, que provocavam graves riscos de esgarçamento social. Uma das soluções empregadas, segundo Hudson, é conhecida no Antigo Testamento (Dt 15, 1): os jubileus, intervalos de anos (no caso dos israelitas, a cada sete anos) em que as dívidas eram perdoadas.

Independentemente do prazo, Hudson, especialista em sistemas de crédito, alerta para a necessidade de um acerto de contas, capitaneado pelo poder político, de modo a restaurar o equilíbrio entre credores e devedores. Caso contrário, alerta o economista, se os interesses dos credores são sempre protegidos por lei e o papel do Estado for apenas “proteger contatos”, “credor” e “devedor” deixam de descrever relações econômicas e passam a ser castas hereditárias. A economia produtiva, ao invés de se organizar em torno de fazer o que uma civilização precisa para se sustentar, estará subordinada aos caprichos dos oligarcas-credores.

Diante desse quadro, alguns candidatos à presidência da República apresentaram propostas sobre o endividamento das famílias. O programa de governo do ex-presidente Lula prevê, em termos genéricos, a “renegociação das dívidas das famílias e das pequenas e médias empresas por meio dos bancos públicos e incentivos aos bancos privados”. Na última semana, a equipe de Lula estaria trabalhando em uma proposta mais detalhada de renegociação de dívidas de contas de água e luz, com foco em mulheres, deixando de fora os créditos bancários. Ciro Gomes anunciou, em entrevista no Jornal Nacional, uma proposta de uma “Lei Anti-Ganância”, inspirado em modelo do Reino Unido, que proibiria as instituições financeiras de cobrar mais de duas vezes o valor de um empréstimo ou de dívidas no cartão de crédito ou cheque especial. O candidato do PDT já havia, em 2018, proposto uma renegociação para retirar as famílias mais pobres de cadastros de devedores, como SPC e SERASA. Os programas de governo do presidente Jair Bolsonaro e de Simone Tebet não trazem propostas relacionadas ao endividamento das famílias.

O que a Comunhão Popular teria a dizer a respeito? Acreditamos que é necessário ir além de suspensões temporárias, que ainda por cima excluem os bancos dos ajustes necessários. É preciso construir uma solução mais profunda e mais justa.

A atenção aos mais pobres e desvalidos sempre foi uma das preocupações da Doutrina Social da Igreja. Não é de se estranhar, portanto, que a Igreja tenha algo a dizer quanto à economia e quanto à justiça nela praticada. Desde o Antigo Testamento até o início da Idade Moderna, pode-se ver uma condenação à prática do empréstimo a juros, chamada usura. Essa condenação também existe no islamismo.

Devemos ter a noção de que, tanto na Idade Antiga quanto na Idade Média, a posse da moeda não tinha, por si mesma, valor econômico (visto que não se tinha a noção de frutificar o dinheiro naquela época), mas apenas valor útil, como os outros bens perecíveis. E cobrar os juros, nesse contexto, significaria precificar em dobro o valor do bem emprestado.

São Tomás de Aquino esclarece, na Suma Teológica, IIa-IIæ, q. 78, a.1, a distinção entre as coisas que o uso leva ao total consumo do bem (que só tem o valor útil) e aquelas coisas cujo uso pode frutificar, visto que o uso não implica o seu consumo total (e, podendo frutificar, teriam valor econômico, podendo-se cobrar o uso de tais coisas). Acrescenta que “receber usura pelo dinheiro emprestado é, em si mesmo, injusto, porque se vende o que não se tem; donde nasce manifestamente uma desigualdade contrária à justiça”. Emprestando o dinheiro, a posse dele passa ao que tomou emprestado (já que a posse da moeda não tinha valor econômico). Assim, aquele que emprestou, não possuindo mais o valor emprestado, não poderia cobrar por ele.

Tal cenário foi alterado com a entrada no capitalismo, em que a posse da moeda, entendida como frutificável, por si só, já representava valor econômico. Nesse sentido, a cobrança de juros passou a ter razão de justiça, pois a moeda deixou de ter valor apenas útil e perecível.

Porém, ainda persiste nos dias de hoje o problema da cobrança excessiva de juros. O problema em si não reside no montante da taxa de juros, mas no modo como ela é cobrada e de quem ela é cobrada.

Há dois métodos de cálculos dos juros: o simples e o composto. Na forma simples, a dívida cresce linearmente. Porém, na forma composta, cresce exponencialmente, elevando – e muito – o lucro do banco e o valor da dívida. Esse é o chamado anatocismo.

Sabendo disso, podemos fazer alguns juízos. Quando uma empresa toma dinheiro emprestado, ela utilizará o montante para produzir e gerar mais lucro para ela. Nesse sentido, o dinheiro tem o papel de capital e sua posse está no máximo de valor econômico, tanto para o banco, quanto para a empresa. Nesse caso, não se poderia dizer que é injusta a cobrança de juros na forma composta, na qual há juros sobre juros.

No entanto, quando a instituição financeira empresta dinheiro para o consumidor comum, outro deve ser o regime de juros. Isso porque esse empréstimo não será usado para produzir novos bens nem para a geração de lucro. Nesse caso, o dinheiro é tratado por quem toma o empréstimo como mero bem útil e perecível e a moeda só tem valor econômico para o banco, devendo este cobrar da forma mais vantajosa para o consumidor, ou seja, a juros simples.

O anatocismo nas relações de consumo é prática corriqueira em nosso país. Segundo estudo do Procon-SP, os juros cobrados para a concessão de empréstimos a pessoas físicas nos bancos públicos e privados chegam a 120,59% ao ano, enquanto as taxas de juros do cheque especial alcançam 150,56% ao ano. Esse problema afeta profundamente a estabilidade social. Leva à asfixia das economias familiares, força o rompimento das sociedades conjugais e produz uma sociedade que privilegia o rentismo e não a produção. Defendemos, assim, que o anatocismo nas relações de consumo deve ser proibido.

Uma objeção comum do campo liberal a essa proposta, bem como a qualquer tentativa de intervenção do Estado nos desequilíbrios entre credor e devedor, é “quem vai emprestar dinheiro se não houver juros?” (e nem estamos falando do fim total dos juros, mas do anatocismo, apenas). O que eles estão realmente perguntando é “quem vai se associar aos outros se não puder explorá-los no processo?”. Em um país com mais de 200 milhões de habitantes, no qual mais de 60% do PIB é composto pelo consumo das famílias, é difícil conceber que o crédito sumirá com a adoção de uma fórmula mais justa de cobrança de juros. Se os atuais bancos não estiverem dispostos a deixar de serem máquinas de extração predatórias para ordenhar riquezas imerecidas da classe trabalhadora, com certeza aparecerão substitutos.

Assim, nós, da Comunhão Popular, acreditamos que a solução deve ser muito mais radical do que as propostas pelos candidatos à Presidência. Não pregamos um simples alívio, mas uma mudança na distribuição dos encargos entre credor e devedor, em favor de uma sociedade mais justa e contra o rentismo. Havendo justiça, será possível que as famílias saiam da situação precária de superendividamento em que se encontram e cooperem mais, assim como os próprios bancos, para o bem comum.

Sob Deus e com os pobres,

A Comunhão Popular

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