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O NOSSO COMPROMISSO COM AS RUAS

São tempos de eleição. Uma bandeira, porém, que você certamente não verá sendo hasteada pelos políticos é a da defesa dos direitos das pessoas em situação de rua. Se o pobre é pessoa socialmente vulnerável, o pobre, sem o voto, mais do que vulnerável, é reduzido à completa invisibilidade social.

Além disso, aquele que mora na rua possui uma concretude incômoda demais para o humanista de palanque. Parafraseando Gustavo Corção, é mais fácil dedicar horas de interesse pelas criancinhas desnutridas de países longínquos e querer o bem de toda a humanidade do que fazer algo pelo pobre que se lhe apresenta na rua, com um toque incômodo no braço, pedindo-lhe algo bem debaixo do nariz. Ajudas humanitárias a outros países, por óbvio, são justas e necessárias, mas este pobre real do nosso dia a dia possui densidade ontológica e toda uma espessa concretude – com seu rosto, pelos, cheiro, músculos – que são um convite para os tais humanistas dirigirem seus bons sentimentos apenas para coisas mais abstratas, elevadas e distantes. Nós, da Comunhão Popular, porém, queremos fazer diferente: olhar, sim, para todos que precisam e fazê-lo, com especial atenção, para quem se faz carne em nossas vidas.

Atualmente, é verdade, as pessoas em situação de rua recebem maior atenção do nosso ordenamento jurídico, mas nem sempre foi assim. Até o ano de 1940, este grupo vulnerável vivia em um completo ponto cego das políticas públicas, razão pela qual se convencionou chamar o período de “fase de invisibilidade”. Com o advento do Código Penal brasileiro, em 1940, o Estado passou a dispensar atenção a estas pessoas, só que de forma meramente punitivista e higienista. Primeiro, criminalizou a conduta de abandono intelectual, definida como “permitir alguém que menor de dezoito anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância mendigue ou sirva a mendigo para exaltar a comiseração pública” (art. 247, inciso IV, do CP/40); em seguida, tipificou como contravenção penal a conduta de “mendigar, por ociosidade ou cupidez”. Não à toa, esta ficou conhecida como “fase da estigmatização”.

Somente décadas depois, com a Constituição Federal de 1988, sobreveio a “fase da esperança”, com a expectativa de que a Carta Política ganhasse concretude e eficácia normativa. O passo mais importante dessa evolução jurídica, porém, foi dado somente em 2009. Neste ano, foi revogado o artigo 60 da Lei de Contravenções Penais, que punia a conduta de mendicância. Além disso, a principal novidade foi a promulgação do Decreto nº 7.503, que, ao instituir a Política Nacional para a População em Situação de Rua, deu início à “fase humanista”, que ora nos encontramos.

De acordo com o art. 1º, parágrafo único, do Decreto nº 7.503, pessoas em situação de rua são “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.” Este dispositivo é uma grande conquista legislativa. Mas, sem pretender reduzir a sua importância, a verdade é que, na prática, não é tão fácil identificar este grupo populacional, o que, inclusive, ensejou o ingresso de uma ação civil pública, em 2018, por parte da Defensoria Pública da União, questionando a omissão do IBGE ao não incluir estas pessoas nas pesquisas do Censo.

A última pesquisa nacional sobre população de rua foi coordenada, em 2007/2008, pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Na ocasião, foram registradas 31.922 pessoas vivendo em espaços públicos. Com base nesta pesquisa, um grupo de defensores públicos verificou alguns dados importantes: 82% destas pessoas são homens; 53% possuem entre 25 e 44 anos, 67% se declaram pardas ou negras, 70,9% trabalham e exercem alguma atividade remunerada; apenas 15,7% pedem esmola como principal meio para sobrevivência; 24,8% não possuem identificação; 88,5% afirmam não receber qualquer benefício do governo.

Sabe-se, também, tal como citado na redação do Decreto nº 7.503, que se trata de grupo heterogêneo, com perfis muito distintos, sendo, por vezes, a realidade de exclusão e vulnerabilidade da rua a única coisa em comum entre seus membros. As causas que levam a esta tragédia também são diversas, abrangendo violência doméstica, uso abusivo de álcool e substâncias ilícitas, deficiências, questões de saúde mental, problemas familiares, passagem pelo sistema penitenciário, discriminação contra transexuais etc. Além disso, há todos aqueles que crescem debaixo das marquises e sobre as calçadas desde o ventre materno.

Nós, da Comunhão Popular, acreditamos que a grande vilã causadora desta chaga social é a desestruturação das famílias brasileiras, de modo que somente o trabalho de prevenção junto aos lares pode apresentar real eficácia para resolver este complexo problema. Porém, quando todas as medidas preventivas falham, o que fazer para superar este cenário desolador? Como apagar este incêndio? Há, pelo menos, dois modelos concorrentes de trabalho.

O Promotor de Justiça Thimotie Aragon Heemann, em artigo sobre o assunto, sustenta que o modelo “housing first”, adotado nos Estados Unidos da América, é o mais eficiente. Como o próprio nome sugere, este modelo de combate à situação de rua defende, grosso modo, que a concessão de moradia é pressuposto para a viabilização de todos os demais direitos da pessoa humana. Respeita-se a autonomia do sujeito, mas, logo na fase inicial da política pública, já se busca encaminhá-lo para uma moradia adequada, não sendo preciso trabalhá-lo previamente até que ele esteja “pronto” para recebê-la. Estima-se, para o modelo norte-americano, uma taxa de 85% de êxito. O modelo norte-americano, contudo, apresenta custos muito altos, revelando-se, na prática, privilégio de países ricos.

Ainda segundo Thimotie Aragon, a Política Nacional de Pessoas em Situação de Rua, tal como aplicada no Brasil, em razão principalmente de uma realidade orçamentária bem distinta, adota o “modelo de atendimento”. A ordem de prioridade, então, é invertida: primeiro, busca-se garantir a autonomia da pessoa em situação de rua para só então, em um segundo momento, conferir a ela uma moradia adequada. Entre uma ponta e outra do processo, três estágios são percorridos. A institucionalização constitui a primeira etapa, em que a pessoa é abrigada, provisoriamente, para o pernoite, em albergues, abrigos, casas de passagem ou de trânsito (CTs). No segundo estágio, os CAPS – Centro de Atenção Psicossocial e os Centros POP buscam atuar de forma mais intensa na assistência à saúde do atendido, além de promover o seu ingresso no mercado de trabalho e em alguma moradia impessoal (condomínios sociais, repúblicas etc.). Por fim, somente no terceiro estágio, o Estado procura viabilizar uma moradia individualizada, debelando, definitivamente, a situação de rua.

O modelo brasileiro, no entanto, possui muitas deficiências e gargalos. As poucas instituições de abrigo temporário que existem não dão conta da imensa demanda, razão por que os interessados precisam chegar cedo à fila para conseguir vaga. Isso acaba criando um obstáculo a mais para a empregabilidade. E não só isso! Em razão das regras disciplinares destes locais, os abrigados também ficam impedidos de trabalhar no turno da noite. Vê-se, então, que mesmo a passagem do primeiro para o segundo estágio é altamente improvável, não sendo incomum que os atendidos tenham recaídas e voltem para as ruas mais cedo ou mais tarde.

Diante de um público hipervulnerável e de grandes restrições estruturais e orçamentárias, torna-se ainda mais importante que o Poder Público trabalhe com criatividade e proatividade. Em primeiro lugar, adotando uma gestão política pautada na intersetorialidade e na articulação entre políticas públicas capitaneadas pelos diferentes órgãos da rede de proteção, passando por iniciativas jurídicas da Defensoria Pública e do Ministério Público até as ações de saúde do SUS, bem como pelo atendimento social do CREAS e dos Centros POP. Também é preciso adotar o método de busca ativa, pelo qual os profissionais saem dos escritórios e dos hospitais para ir ao encontro das pessoas vulneráveis na realidade de rua em que se encontram inseridas. São exemplos disso os Consultórios na Rua do SUS e a Ronda de Direitos Humanos da DPRJ, em conjunto com a DPU. Além disso, é preciso replicar por todo país o modelo de sucesso dos órgãos públicos especializados, como o Posto Avançado de Identificação Civil (Méier/RJ) e o Núcleo Pop Rua, da DPBA.

Por fim, sendo este um drama que toca a todos, o papel de mobilização da sociedade civil organizada é imprescindível. Em Minas Gerais, neste ano, o MNPR – Movimento Nacional da População em Situação de Rua, movimento apartidário criado em 2005, promoveu um Festival Cultural para levar espetáculos artísticos para este segmento populacional. Na capital de São Paulo, por sua vez, o tradicional Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), popularmente conhecido como “Chá do Padre”, é um espaço de acolhida, escuta e partilha que oferece, diariamente, centenas de refeições e lanches da tarde, além de serviço de barbearia solidária. Realiza, também, ações de inverno, ceias de natal e outras iniciativas. Também existe em São Paulo o trabalho efetuado pela Pastoral do Povo da Rua. Digno de nota, ainda, é o trabalho da Fazenda Esperança, em Teresópolis/RJ, uma comunidade católica dedicada ao atendimento de dependentes químicos. Vimos, também, há poucos anos, uma bela iniciativa invadir diversas esquinas do país: referimo-nos às lojas de roupa, conhecidas como “The Street Store”, montadas nas ruas pelas doações e pelo trabalho de voluntários. Isso para ficarmos em alguns exemplos.

Pois bem. Com a inauguração dos núcleos regionais, nós, da Comunhão Popular, também desejamos nos unir a estas iniciativas, arregaçar as mangas e fazer mais pelos nossos. Desejamos, assim, seguir o espírito da nossa padroeira, Irmã Dulce, que, ao ser questionada, com doçura respondia “O meu partido é a pobreza. A minha política é a do amor ao próximo”. Arrematava, ainda, dizendo: “A gente vive a vida deles, a gente não vive mais a própria vida. A gente vive a vida de Cristo na vida do pobre. Primeiro eles, depois nós.”

Se você compartilha conosco deste ideal, fique de olho nos núcleos da Comunhão Popular!

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