Ganhou repercussão recentemente a proposta do professor Vladimir Safatle, candidato do PSOL a deputado federal por São Paulo, de transformação do Brasil em um “Estado Plurinacional”. De acordo com material de campanha de Safatle, “os povos originários têm prevalência em relação à instauração do Estado Nacional. Logo eles têm prerrogativas de formas jurídicas, modos de produção, ocupação de território, sistemas sociais que devem ser reconhecidos, assim como servir de motor para superar o Estado-Nação”.
Quem nos acompanha sabe da sensibilidade da Comunhão Popular pela questão indígena e do apreço que temos pelas comunidades locais e pela descentralização do poder. Qual seria, então, a nossa posição sobre a possibilidade de um “Estado Plurinacional” no Brasil?
De acordo com o último censo do IBGE (2010), o Brasil teria cerca de 900 mil indígenas, dos quais 36,2% em área urbana e 63,8% na área rural. Desses, 8,9% vivem em terras indígenas, mas se declararam de outra cor ou raça, ainda que reconhecessem vínculos com a cultura indígena. As terras indígenas, segundo o IBGE, que trabalhou na sistematização desses dados em parceria com a Funai, representam 12,5% do território brasileiro, mesmo que mais da metade dessas terras não estejam regularizadas fundiariamente. Nessas terras, residiam, em 2010, 517,4 mil indígenas (57,7% do total). Foram identificados 305 povos diversos. As línguas indígenas são mais de 180 ainda faladas. Ainda de acordo com o censo de 2010, dos indígenas com 5 anos ou mais de idade, 37,4% falavam uma língua indígena e 76,9% falavam português.
Uma proposta como a de Safatle poderia significar, em tese, alterar o artigo 1º da Constituição Federal (“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal…”) para conferir autonomia a mais de 300 “nações”, cada uma com entre 1,7 mil e 3 mil pessoas em média, que ocupariam 12% do território nacional. “Nações” em que a maioria da população fala português, situadas em territórios pouco integrados com o resto do país, com baixa presença das funções básicas do Estado e sujeitos a dificuldades de sobrevivência.
Safatle não costuma trazer os motivos a favor da medida, além de dizer que “a soberania baseada no apagamento de povos que nos compõem é falsa” ou considerações sobre o fato de o Estado brasileiro ser posterior à existência dos povos originários. Os defensores da proposta costumam citar a Bolívia, em que 40% da população se considera parte de algum grupo indígena. No Chile, a criação de um “Estado Plurinacional” tem sido apontada como um dos principais motivos da rejeição do projeto constitucional votado há algumas semanas. Aqui, a deputada federal e advogada Joênia Wapichana (@joeniawapichana) jamais apresentou PEC a respeito de “Estado plurinacional” na Câmara dos Deputados.
A Comunhão Popular é a favor da demarcação administrativa das terras indígenas e não vê problema em menos de 1% da população ocupar 12% do território, até porque as terras indígenas constituem bem patrimonial da União, cabendo aos povos seu usufruto. Mas ao mesmo tempo acreditamos que não basta garantir o que lhes sobrou, pois esse modelo tem apenas prolongado a manutenção dos povos indígenas completamente à margem da dignidade humana, seja em seus próprios territórios ou em locais para os quais foram forçadamente realocados, como áreas rurais carentes de recursos e periferias urbanas. É preciso garantir-lhes espaço no sistema político e jurídico.
A nossa Constituição de 1988 contemplou demandas importantes de movimentos em defesa dos direitos de povos indígenas reconhecendo sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Mas a constitucionalização desses direitos não garante a mudança institucional e não garantirá enquanto a atuação do poder público, em qualquer circunstância, não levar em consideração a participação e decisão dos povos indígenas sobre questões que lhes dizem respeito.
Vemos, porém, por trás das boas intenções de “empoderamento indígena”, ideias divisionistas/segregacionistas contrárias à índole dos brasileiros, aí inclusos os próprios indígenas. Assustados com o apego do brasileiro a suas raízes, com o amor à pátria – mesmo que distorcido por oportunistas – e com a rejeição à sua agenda destruidora de valores, o processo de desenraizamento pregado pela esquerda progressista começa a lançar mão de “criatividade política”, nas palavras do candidato do PSOL. Os brasileiros que não se alinham a essas ideias são falsamente equiparados a posições xucras e entreguistas, como as de Jair Bolsonaro. Nessa leitura, quem não quiser inventar “nações indígenas” no Brasil passa a ser automaticamente chamado de fascista.
“Dividir para conquistar” é uma estratégia antiga e eficiente. Não parece ser conspiracionista pensar em “nações indígenas” com menos de 3 mil habitantes no coração da Amazônia, com sua extensa autonomia de direitos e poucos meios de fato, frente grupos empresariais bilionários, ONGs internacionais e invasores de terras, cada um com um projeto mais caótico para a Amazônia, que não necessariamente têm a ver com o que o Brasil e seus povos indígenas precisam e desejam.
O que os povos indígenas precisam é ser respeitados como brasileiros, com acesso a direitos e serviços públicos, e não serem tratados como experimento de engenharia social. A maioria esmagadora deles se considera brasileiro e quer apenas ter seus direitos reconhecidos. O respeito ao seu modo de vida, como de qualquer comunidade brasileira, está sujeito, sim, ao respeito aos direitos e deveres estabelecidos na Constituição da República. O ensino escolar nas terras indígenas deve ser adaptado a suas necessidades e peculiaridades culturais. Não se deve perder de mente, contudo, que as culturas indígenas são parte do arcabouço cultural do Brasil e devem ser promovidas como parte da política cultural do Estado brasileiro, não de “nações” fadadas à inviabilidade. Outra discussão jurídica interessante, mais complexa e incabível por ora, diria respeito a instrumentos constitucionais pelos quais os povos indígenas e suas instituições façam parte da estrutura de Poder no país.
Nós, da Comunhão Popular, somos a favor do respeito à vida comunitária indígena, inclusive como via de atuação política. Queremos um Brasil que seja uma “comunidade de comunidades”. Rechaçamos, porém, qualquer desenho institucional gestado em gabinetes de militantes políticos e sem conexão com a realidade brasileira.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular