Hoje, dia 15 de Novembro, é feriado nacional de homenagem à Proclamação da República. Para milhões e milhões de brasileiros, oprimidos pela exaustão da jornada de trabalho, trata-se certamente de um dia feliz. É a oportunidade de descansar um pouco, conviver com a família, se divertir com os amigos. Mas e para além disso? O que significa exatamente o Dia da República? Que valor ele tem para nós?
Aparentemente, não muito. Com efeito, nosso país vive hoje uma das mais graves crises políticas de sua história. Saímos das últimas eleições presidenciais completamente cindidos. O Brasil parece partido ao meio, tal como os votos do segundo turno. Nessa confusão, o que mais ganha força é o sentimento de descrença e desânimo, a mais profunda falta de identificação entre o povo e as instituições do país. Para a ampla maioria da população, a República não significa nada. É, na melhor das hipóteses, um símbolo. Não por acaso, se disseminam com tanta facilidade discursos golpistas e contrários às instituições, seja clamando por intervenção militar ou simplesmente se recusando a reconhecer o resultado das urnas.
Ora, o que a fé cristã tem a nos dizer sobre isso? O que a Doutrina Social da Igreja tem a nos ensinar sobre o assunto? Muitíssima coisa. De fato, ao contrário do que têm pensando muitos cristãos, nossa fé não nos ensina que devemos obediência apenas as instituições e governos que nos agradam. Muito pelo contrário. Na Carta aos Romanos, o Apóstolo Paulo ensina com toda clareza: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem atraem sobre si a condenação. Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito” (Rm13, 1-2.5.7). O Apóstolo Pedro, em uma de suas cartas, diz o mesmo: “Por amor do Senhor, sede submissos a toda autoridade humana” (1Pd 3,13). E tudo isto dito não num tempo de governos bondosos e justos, mas, pelo contrário, numa época de tirania, em que Nero governava o Império Romano e perseguia barbaramente os cristãos.
A doutrina cristã não exclui a possibilidade de, em casos extremos, o povo rebelar-se contra as autoridades constituídas, tirando-as à força do poder. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, no “De Regno”, afirma com todas as letras: “Uma vez que compete ao direito de qualquer multidão prover-se de rei, pode ela sem injustiça destituir o rei instituído ou refrear-lhe o poder, se ele abusar tiranicamente do poder real. E não se julgue que, ao destituir o tirano, tal multidão age com infidelidade, apesar de lhe dever submissão perpétua. O tirano mereceu que os súditos não cumpram para com ele o pactuado, uma vez que não se portou fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei”. As próprias Sagradas Escrituras, no Livro de Juízes, narram uma rebelião popular abençoada por Deus. De fato, quando Eglon, rei de Moab, invadiu as terras de Israel e dominou tiranicamente sobre o povo judeu, “Os filhos de Israel clamaram ao Senhor, que lhes suscitou um libertador na pessoa de Aod, o canhoto, filho de Gera, benjaminita” (Jz 3,15). E o que fez Aod? Preparou uma emboscada, uma armadilha através da qual matou pessoalmente Eglon. Depois, tocou sua trombeta e convocou os israelitas para a batalha: “Naquele dia, Moab foi humilhado sob a mão de Israel. E a terra teve um descanso de oitenta anos” (Jz 3, 30).
É preciso, porém, muita prudência na compreensão desta doutrina. Em verdade, por coerência com seus próprios fundamentos, ainda que admita o direito do povo pegar em armas contra a tirania, a fé cristã ensina taxativamente que este deve ser o último recurso, depois de esgotados todos os outros meios. O próprio Santo Tomás, no mesmo texto em admite a possibilidade da resistência civil, esclarece que “se não for excessiva a tirania, é mais conveniente tolerá-la branda, temporariamente, do que, na oposição ao tirano, ficar-se emaranhado em muitos perigos mais graves do que a própria tirania.” Na mesma direção, em “Populorum Progressio”, ensina Paulo VI, que “certamente há situações cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de participação na vida social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária – salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país – gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior”.
Todo cidadão, portanto, possui, inegavelmente, um grave dever de fidelidade às instituições públicas do seu país. No caso concreto do Brasil, todos devemos fidelidade à República.
Claro, ninguém é obrigado a gostar do regime. Eventualmente, há bons cristãos que consideram a monarquia uma forma de governo mais perfeita do que a república. Da mesma forma, há aqueles que preferem um regime parlamentarista, diferente do nosso. Tudo isto pode ser discutido, debatido, e está muito que bem. Nosso dever de fidelidade às instituições do país, no entanto, permanece completamente intacto, pois ele não depende das nossas predileções pessoais. Não devemos reverência à ordem política da pátria porque ela nos agrada ou nos satisfaz, mas porque esta é nossa obrigação cidadã, diante de Deus e diante dos homens.
É por isso que, num período tão crítico do país, o 15 de Novembro se reveste de um significado todo especial. Em uma época na qual o golpismo é defendido a céu aberto e na qual pessoas que se dizem conservadoras adotam uma postura revolucionária – no pior sentido possível do termo -, neste tempo então é muito oportuno recordar nossos deveres cívicos.
Os cidadãos têm todo o direito de ficar insatisfeitos com o destino final de uma eleição. Mas não podem, por isso, recusar-se a aceitar o resultado das urnas ou a prestar obediência ao governante legitimamente eleito. As pessoas podem perfeitamente desconfiar da lisura das eleições, se tiverem motivos razoáveis para isso. Mas não podem simplesmente continuar gritando “Fraude!”, com base em “relatórios” e narrativas obviamente fantasiosas, que já foram desmentidos de modo mais que suficiente pela autoridade responsável. O povo pode e deve apresentar todas as críticas que julgar pertinentes ao modo como funcionam as instituições do país, mas não pode nem deve, de forma algum, assumir uma postura anti-institucional. Isso é um comportamento imoral, anti-patriótico e anti-cristão.
Respeitemos e honremos a República. Não por ser, em abstrato, a melhor forma de governo – coisa discutível. Não por ser, em nossa história, um regime isento de erros e de falhas – coisa obviamente falsa. Mas por ser a nossa forma de governo, o modo de ser e estar da nossa sociedade hoje no mundo.
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular.