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“Os mais aventurosos são aqueles que falam à maneira do cantor. O seu canto é afastado de toda auto-asserção premeditada. Sua canção não demanda que nada seja produzido. A canção destes cantores não é nem solicitação, nem comércio.” (Martin Heidegger, “Para que poetas”)

Rolando Boldrin, Senhor Brasil. A associação tão forte com o País aconteceu de um jeito orgânico, que lembra muito a composição de modas-de-viola – esse gênero tão do interior paulista, fluminense, mineiro, goiano e mato-grossense. Uma boa moda aparece como “romance”, canção à maneira medieval, colada ao texto; sem improvisos como os dos repentistas nordestinos, mas também enraizada na imaginação do povo e a serviço dela, por meio de narrativas e “causos” entoados na melodia sustentada por acordes de viola. Na moda autêntica, esse enraizamento constrói e traduz sentido e identidade no plano simbólico, a serviço do imaginário popular.

Boldrin ajudou a traduzir sentido e identidade do que chamamos “nação”. Fez isto com a simplicidade de violeiro, ao longo de décadas e da maneira mais livre; não improvisada, apesar das aparências, mas confiante na memória, como cabe a todo bom proseador.

É uma coincidência interessante que sua passagem se tenha dado no mesmo dia daquela de Gal Costa, nisto juntando-o à intérprete de um Brasil “moderno” e também autêntico, mas que não existiria sem a articulação do próprio e do alheio, da memória e do novo, que Boldrin tipificou de maneira extraordinária.

As possibilidades e limites dessa articulação eram muito controversas nos anos 60, quando ambos começavam suas trajetórias artísticas. O debate naquele período incidia com força entre quem pensava o que hoje chamamos de MPB, e encontrava eco na revista “Civilização Brasileira”, motivando um saudável questionamento de Caetano Veloso e Edu Lobo sobre excessos “nacional-populares”. Estes eram tipificados na hostilidade de José Ramos Tinhorão contra a bossa nova, porque caudatária de “influências do jazz”. Não foi casual o recurso de Edu (amigo do “nacional-popular”, mas “da banda do jazz”) a Mário de Andrade para aclarar: o “artista não deve ser exclusivista, nem unilateral. O compositor brasileiro tem [no entanto] que se basear quer como documentação, quer como inspiração, no folclore”.

Rolando Boldrin sintonizaria com Edu Lobo e com o autor de “Macunaíma”. Ele próprio, a vida inteira um menestrel caipira de São Joaquim da Barra, sustentou durante décadas um programa aberto a todo gênero de produção musical brasileira, sempre na contramão de qualquer lógica mercantilizante. Privilegiando o que fugia às grandes redes midiáticas (e o fato de se ter projetado a partir da Globo apenas reforça o seu mérito), acolheu e deu voz na sua “sala de casa” da TV Cultura aos que exprimiam os mesmos “valores nacionais” buscados nos anos 1960 por um cosmopolita Carlos Lyra em diálogo com Villa-Lobos, Cartola ou João do Vale.

Meio ao acaso, poderíamos lembrar que, ao longo de tantos anos, bateram papo com o Senhor Brasil não somente o pessoal afinado com o caipira por excelência Renato Teixeira (gravaram um disco juntos em 2005), mas gente tão diversa, urbana e original como Itamar Assumpção, Belchior e Zé Paulo Becker. Encontros em torno da gratuidade das canções, nesse espaço em que Boldrin soube servir como ministro e menestrel: o de um projeto de nação chamado Brasil, longe da balbúrdia de disputas de hegemonia e de reduções ideológicas.

Serviço que implica também uma construção política e dá sentido à Comunhão Popular, no rumo bem traçado por Ariano Suassuna. Neste rumo é que rendemos homenagem a Boldrin, lembrando de sua “oração” quando partiu Suassuna. Ela se aplica ao próprio Senhor Brasil neste seu sétimo dia de falecimento:

“Ariano foi Quixote
E lutô de alma pura
Contra a arte descartável
Vestiu a sua armadura
Em qualquer dia do ano
Eu digo
Viva Ariano Suassuna
Padroeiro da cultura.”

Viva Rolando Boldrin!

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