Afirma o ditado popular, com grande sabedoria, que “Quem casa quer casa”. Isto é, toda pessoa humana, tão logo se organiza para constituir uma família, deseja ter um lar que seja seu, um espaço de intimidade no qual possa habitar com segurança e conforto. Este desejo natural, legítimo como é, encontra-se fortemente amparado na Doutrina Social da Igreja, em especial, na sua doutrina da propriedade privada.
“Entre todos os bens que podem ser objeto da propriedade particular” – afirma o Papa Pio XII na sua Radiomensagem de Pentecostes de 1941 – “nenhum é mais conforme à natureza, segundo a doutrina da Rerum Novarum, do que o terreno ou a casa onde habita a família e de cujos frutos tira total ou parcialmente com que viver. E é segundo o espírito da Rerum Novarum afirmar que, de regra, só a estabilidade enraizada num terreno próprio faz da família a célula vital mais perfeita e fecunda da sociedade, unindo esplendidamente com a sua progressiva coesão as gerações presentes e as futuras. Se hoje o conceito e a criação de espaços vitais está no centro das finalidades sociais e políticas, não se deveria, antes de tudo o mais, pensar no espaço vital da família e libertá-la de condições que não lhe permitem sequer a formação da ideia de um lar próprio?”
Infelizmente, o apelo feito pelo Santo Padre oitenta anos atrás está bem longe de ser realidade no Brasil de hoje. Ao contrário, vivemos um gravíssimo quadro de exclusão urbana no país, com uma multidão enorme de pessoas vivendo sem teto ou em moradias degradantes.
Segundo o último levantamento da Fundação João Pinheiro, instituição de pesquisa que é referência nacional no tema, há ao todo um déficit habitacional de quase 6 milhões de moradias no Brasil. A FJP contabiliza como déficit habitacional diferentes situações. Dos domicílios rústicos (sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada) às moradias improvisadas (localizadas em espaços impróprios, como estabelecimento comercial, embarcação, carroça, prédio em construção, vagão, tenda, barraca, gruta). Das residências com coabitação familiar (estruturados em modelo de cortiço) àqueles com ônus excessivo de aluguel (em que o custo do aluguel custa mais de 30% do orçamento da família). Também os domicílios com adensamento excessivo (nos quais há mais de três moradores para cada quarto) se enquadram na categoria.
Combater esse cenário de injustiça é uma tarefa urgente, mas também complexa. Exige, por isso, muitas frentes de trabalho. No Brasil, já há várias décadas, o governo federal tem dado prioridade à estratégia de programas de habitação popular, como o “Minha casa, minha vida”, o “Casa verde e amarela” e o antigo BNH. Esse tipo de política pública tem seus méritos, e deve ser levada adiante, mas é claramente insuficiente. Primeiro, pelo seu custo elevado. Em segundo lugar, pelos problemas que traz consigo, como as moradias distantes dos grandes centros e os processos de favelização. Por fim, os programas de habitação popular não atacam um dos grandes problemas da moradia no país, que é a especulação imobiliária.
Não basta, de fato, apenas criar moradias novas. É preciso garantir o uso efetivo de todas aquelas que hoje estão disponíveis, mas se encontram subutilizadas. E os dados a respeito são escandalosos: tão grande quanto os números do déficit habitacional no Brasil é também a quantidade de imóveis vazios no país. São cerca de seis milhões de moradias abandonadas, algumas delas sem uso há vários anos, em uma violação claríssima da chamada função social da propriedade, um princípio consagrado tanto pela Doutrina Social da Igreja quanto pela própria Constituição Federal de 1988.
O dono de um imóvel desabitado tem seu legítimo direto à propriedade, mas este não pode prevalecer sobre o direito à moradia daquele que vive sem teto. Sabemos que muitas vezes os procedimentos legais não são simples, há imóveis que são de órgãos estatais ou estão envolvidos em processos judiciais, mas há uma injustiça maior e mais antiga que precisa ser resolvida. O Estado, portanto, tem que agir – e em quatro níveis. Antes de tudo, dando o exemplo, ao destinar seus próprios imóveis sem uso à moradia popular. Depois, buscando adquirir, a um preço razoável, as casas vazias localizadas nos grandes centros urbanos. Em seguida, nos casos mais críticos, recorrer à Justiça, para realizar processos de desapropriação. Por fim, como estratégia para inibir a especulação imobiliária, adotar um IPTU progressivo, que penalize anualmente os proprietários de imóveis ociosos e que diminua o valor do imposto sobre as regiões mais pobres das cidades.
Uma reforma urbana abrangente como essa certamente irá contrariar interesses muito poderosos. Para os que nos quiserem chamar de radicais, nós, porém, da Comunhão Popular, já temos uma resposta pronta. É aquela dada por Giorgio La Pira (1904 – 1977), o grande democrata-cristão italiano que hoje é considerado venerável pela Igreja Católica. Prefeito de Florença durante vários anos, La Pira enfrentou um déficit habitacional gravíssimo e tomou várias medidas consideradas radicais, como as que propomos. Ameaçado de perder o mandato pela Câmara dos Vereadores, o Santo Prefeito então respondeu, em 24 de setembro de 1954:
“Senhores Conselheiros, com fraterna, mas decidida firmeza, eu vos declaro: vós só tendes um direito para comigo – o de me negar a vossa confiança! Mas não tendes o direito de me dizer “Senhor Prefeito, não se preocupe com as pessoas sem trabalho (demitidas ou desempregadas), sem-teto (despejadas), sem assistência (velhos, doentes, filhos, etc.)”. Este é o meu dever fundamental. Um dever que não admite discriminações e que decorre da minha posição de chefe da cidade – chefe, portanto, da única e solidária família da cidade. Eis que está em jogo a própria substância mesma da graça e do Evangelho! Se há alguém sofrendo, tenho um dever específico: intervir de todas as maneiras, com todos os cuidados que o amor sugere e que a lei prevê, para que esse sofrimento seja diminuído ou aliviado. Não há nenhuma outra regra de conduta para um prefeito em geral – e, em particular, para um prefeito cristão!”
Sob Deus e com os pobres,
A Comunhão Popular